25.3.07

Jejum

Meu fantasma negro e noturno
tem nome, e pulso tom de voz e de pele
tenho as senhas todas dos teus músculos
mas não tem apelido nem gentis abreviações
- que, como a dor da ausência tua, não diminuta -
É.

Firma na mente, sentado, estacado
como um mantra, e perverso
comando, palavra sagrada e íntegra
indivisível nas sílabas e sons que reverbera

E na entorpecência nada volátil
que não mata-me! nem fortalece-me!
portanto apenas vem a colher-me como flor recém-caída
diante da insistência das tuas pálpebras

Das combinações alfanuméricas o infinito
para um único e inestimável segredo
guarda poder no tórax quando pronuncia
a cada anagrama das tuas letras embaralhadas
leio sempre teu nome mesmo silente

Senha para tão óbvio enigma dispensa inteligência
função vital, se faz frugal, impaciente e abstrato
faz-se incontrolável! o pensamento vira crença, e minha!
como deus que eu própria invento meticulosamente
para adorar na intimidade íngreme das minhas estrelas

7.3.07

Platônica

Coisa linda, segredo meu
como posso manter secreto
o que faz meu mundo completo
o que escancara todo meu eu
temo se for sofrer
temo se for chorar
se a razão do meu querer
for ferir-me até sangrar
pensar na queda me dá vertigem
arranca do peito toda ferrugem
fazendo-o novo para amar, de novo
mas sou como terra virgem
curvas fortes até o calcanhar
minha mente e alma surgem
pairando num gesto
entre o primeiro afeto
entre o primeiro olhar

26/01/ algum ano

atravessando

a culpa é minha por não ser culpada
a culpa é minha
por permanecer passiva
e agressiva, e redonda
a tudo que se desconta
e é desmontado
caindo em peças
pelos meus lados
a culpa é minha por não
por não deixar passar
o que simplesmente passaria
por não poder tirar da minha vida
o que vem e estagna
e como eu queria ser outra
para poder ser eu mesma
cair de amores por outras coisas
mas tropeçar pelos mesmos pés
passaria pra mim e não pra você
porque pra você que nunca esteve
a culpa é toda minha
por olhar-te através...

29/10/99

Prata da Casa

seus olhos ontem
olhos de espelho
de prata pesada
chumbo limbo
como rios mortos
de correnteza empoçada
natureza assassinada
após o alívio da chuva da tarde
aquele cheiro de coisa molhada
sobrando por entre a fenda do corpo

23/07/01

Ímã

In-mã
infantil e impossível
desejo tua boca invisível
e teu carinho insensível
envolve-me em outro nível
sentível, sofrível, amável demais
te amo demais
te sinto muito
desisto mais
não posso
mas quero
infantil
impossível
irredimível
quem desperta mais
o oposto, o contrário
o desamor, a despaixão
o desalento
o inédito
impassível
desumano
d'instinto
ímã
irmã gêmea

26/10/98

por baixo das sobrancelhas

você tem cara de mago
por cima dos teus ombros
por baixo das sobrancelhas
vejo a sombra da tua luz.
teus olhos na minha mente
tua altura eclipse à minha frente
penso, amo, respiro o menino
e você me chama de mulher.
não entendo o desejo direito
quando preciso do que não tenho
mas te tenho, sem precisar.
demoníaco, sagrado: respeito

Contenções

você tem em mim canal aberto
por onde correm todos os meus fluxos
você percorre-me inteira
e por completo, sem nem ao menos um olhar
que seja! que veja! que me toque!
mas teu sinal interfere através
de montanhas, continentes,
entre nós
a distância de céus longínquos
amanhecidos, desencontrados
e tão contidos,
tamanho conteúdo
na mesma freqüência.

04.03.07

Areal

quero que meu corpo seja terra
elevou-se do pó, virou areia
do rio, do mar, banhou sereia
deitar e ser horizonte calmo

insinuar relevos, conspirar acidentes
saltos e quedas ou planícies distantes
saltar as quedas, planejar as planícies
extrair a lava profunda, conquistar superfícies

almejar picos mais altos, garimpar diamantes
dominar as correntes, sulcando constantes
render-se às estações, devastar-se com o vento
encharcar-se quase humano de sedento

tremer quantos graus na escala aquela!
tombar soberana o que não passa do chão
ser da noite seu colchão, receber sementes cruas
ou mudas em rama e ser fértil ao homem que se ama

o desejo corre por mim como sombra que cobre,
deita e estende-se como a chuva que ameaça, lavar, levar
enxurrada, como fera no frenesi da caçada
quero pegadas, plantações, sobrehumana, paralela.

15/04/99

acostumada

não sei quem você quer ser pra mim
não entendo sua força gravitacional
tudo o que chove é demais passional
depois de um dia ensolarado vem assim
me enferruja de tão úmido e tanto abrigo
é seco, é quente, ferrenho, fervente
barbante, aço, o baço - contrito, me fende
derrama-se num salto, desabotoa meu umbigo
sente só o meu gemido, neste frio, ressequido
perto da lava que ganha, sobe, explode
no meu leito, no teu peito, perseguindo, acumula
cumpro ordens superiores, inconsciente eu tudo fiz
e sofro agora meu castigo de te amar tanto, mesmo infeliz
deitar com o homem a quem se ama
ter o amor entregue, bandeja na cama
ter na falta, a presença lembrada
saída abrupta, após um ano e meio - acostumada
vazio

Lápis

A minha intenção agora
é falar tudo o que não se pode
porque tudo se perde
e não quero caçar
que não sou caçadora
não quero atacar
não sou predadora...
quero esperar pelas palavras
mesmo que elas não venham
a cor carmim da boca
sabe que existem
e me resistem

antiga, sem data

Orquídea

sombra alta e negra tal mogno ou ébano
jabuticaba, pérola, na sua igual pureza
pílula sob casca de petróleo, dentro melancia
ao desmanchar-se líquida em água e beleza
aroma de órégano na morenice da travessia
tuas mãos fortes amassando-me como fosse farinha
erguendo de mim grande labareda densa e cozinha
enquanto teu hálito é como brisa em tulipa
e tua voz grave dobra toda e qualquer papoula
hoje será amanhã. se ventar um pouco mais,
se a umidade do mar se misturar à minha
virá tempestadde de areia.

e se os olhos virarem repletos -
cento e oitenta graus para o céu -
e virarem estrelas discretos...

a maresia oxidará os metais
embriagadas de leite constelações inteiras
como sardas no meu colo e na polpa das maçãs

despontarão galáxias no meu seio
e após noite adentro no sereno
o sol nasceu dos confins das ladeiras

soberano na ascenção da maior
reverberando à palidez da luz cadente
das outras derradeiras

01/03/07
instável e impassível
a paz me falta aos pés
e os pilares e as pilastras
se ponho de leve, leva através
salas, celas, velas o meu
contra o peito, contra o vento
há noites estreladas sem alento
e outras se estrelam contra o solo
se ponho água naquela flor
caem estranhas, ano velho
em uma destas noites, eu
agüento

16/04/03

Vínculo

são elas que fazem isso
horas de dor cavam textura
da pele, dos anos, do tempo
que passa, escavam ruga
esculpem mapas
dissecam caminhos
do que já foi úmido e viçoso
agora é vinco, trinca
onde era junco, filigrama

2.3.07

existem muitras camadas de mim mesma
revestem-me por sobre a epiderme
embrulha-me para presente, quer-me?
carrega embora no colo pra longe do solo
a içar-me tecidos pra algum lugar bem alto
o frio sonso de outono me toma de assalto
me penduro no cabide junto com o casaco
e se vai temporada morna à Baco
arrepio gelado, fumaça de chá
garganta demais, sobrando pulsar
eu não preciso mais falar nada
preguiça hospedeira herdou-me namorada

15.04.1999

ninar

Boa noite, insatisfeita
que teu sono te faça rejuvenescida
mesmo não precisando de fontes
nem mais admiradores e amantes
porque és força mesmo adormecida
que o deitar te traga redobrada
mesmo sendo assim indivisível
mesmo assim tanto inofensiva
a cada dia por ti se abate uma caça
que não se traduz em conquistas humanas
porque sempre insatisfeita queres mais
teu mundo é povoado por anjos...


04.03.1999