31.7.12

Álbum

Descem as horas como regras negras e quentes Manchas de sol na visão de quem vem de fora com pressa Mesmo vento escapando pelas varandas e sono manso Ascendendo como o peito, a camisola e as cortinas... O horizonte já fletiu com o peso das minhas costas E recostada no vão da porta, reagindo ao sal e ao verão Chegam pontas, pontos, pintas e rugas nos cantos e vírgulas As personagens contam histórias simples e repetidas Mas repletas de fé e loucura de quem acredita mesmo nelas E assim as estórias viram verdades e assim passamos o tempo Que nos passa, impassível, e é passado e pronto!

12.12.11

coordenadas

abram-se as alas, as asas e as velas
e deixem-se levar pela vontade do vento
entorpecem-me as narinas ao te inalar
e respiro todo este ar como se fosse só meu
como se a água do planeta não fosse acabar
se todos bebessem-na de um gole só
toda a atmosfera cabe no meu peito
mas eu a divido com você e o mundo inteiro
como se fosse só por misericórdia
finjo que sou dona de feudos e posses
minto que posso e que possuo
para te ter circunscrito entre as minhas
coordenadas

mesmíssimo lugar

qualquer lugar seria destino
ao se querer fugir de casa
caso não fôssemos jabutis
medianos, altos e baixos
são velhas notas conhecidas
meu pára-quedas não abriu
nem eu estou aqui para contar
a história da minha vida
nem sequer da minha morte
assim eu continuo - a mesma
assisto aos mesmos programas
ouço as mesmas músicas
mas me dizem apenas aquelas
com as quais tenho afinidade
molecular, exata, matemática
o resto não me diz nada
passa reto, batido, bege
tudo muda freneticamente
conforme schumann
e eu permaneço
inacabada

corvo

pássaro ou anjo a mim pouco importa
quando os danos às asas são irreversíveis
onde não sei bem mas a gaiola esteve apertada
como blusa de mangas longas num verão fora de hora
ou longas horas de vigília à beira do alto dos muros
falta coragem de alçar vôo, noturno, final e eterno
rumo ao negro do espaço que nos separa
você me acolheria no seu abraço?
pousar-te-ia indolor tal borboleta
no alicerce do teu segredo
são altas horas e não consigo dormir
porque faz muito silêncio
borbulha lava cada vez que aperto
os olhos, os passos, as palmas das mãos
loucura seria pensar que os fatos regem a verdade
nada significa tanto quanto um vazio
o buraco do prédio demolido
a metade da cama intacta e fria
os sisos arrancados
as penas tolhidas
o vômito
o ventre

25.6.11

cadeiras

Tenho aqui atravessado na garganta
corpo estranho que levanta pulsante
arde, lateja como quando inflamado
vezes até queima roupa pele sonhos
os ossos se tornam gelo inquebrável
mas derrete ao menor sopro morno
e continua cá dentro esse vil monstro
crescente se alimentando em cadeias
insone incipente, ora inerte ora inerente
irreverente em seus fins vitais e inúteis
passa reto não pára sequer para sentar
olhar, ouvir, responder, conversar (comigo)
nas manhãs, nas tardes de outros chás
cafés e inhoque da sorte e do azar (o seu)
atravessa torpe, lancinante, desalmada
bem no meio do pescoço a minha aorta

4.6.11

Não sabe nem pregar um botão!

Como se perde um botão num de seus furos?

Um cisco num olho ciclópico

Uma pedra no sapato de um ex-bípede

E atravessado por agulhas, sigo costurado à sua casa

Alinhavado forte junto ao tecido já poído

Como se foi perder a cabeça?

Como um botão se perde num de seus furos?



16.05.11

suave

como um nó no cabelo quando passa o vento

leva tudo, folha, poeira, besteira e a umidade do ar

deixa os dedos presos nas pontas ao trançá-los

e tranca na alavanca das horas pré-solares

matizes de beges que se cromam com carmins

entumescidos de azul do céu, enrubescidos de pó

xadrez nas sombras cruzadas das telas de metal

listradas nas entrelinhas das venezianas das clausuras 

está lá, presente, elo, amálgama de fios tão libertos

cada um com um destino reverso de cafunés